A
preocupação de Jesus, segundo José Maria Castillo
“A grande preocupação
de Jesus não era se as pessoas pecavam mais ou menos, mas se as
pessoas tinham fome ou estavam doentes”, afirma José Maria Castillo.
“A grande preocupação
de Jesus não era se as pessoas pecavam mais ou menos, mas se as
pessoas tinham fome ou estavam doentes”. O importante teólogo granadino José María Castillo recebeu, à noite, um autêntico
banho de massas, durante sua intervenção na Aula Cultura ABC, de Madri.
A reportagem é de Jesús
Bastante, publicada por Religión Digital, 13-12 2016. A tradução é
do Cepat.
O ato, que serviu para apresentar “La
Humanidad de Jesús” (Trotta), superou as expectativas: todos os assentos da
Aula (mais de trezentas pessoas) cheios para ouvir Castillo, um dos pais
da Teologia Popular e cujos escritos são essenciais para
compreender o “modelo Francisco”. E, pela primeira vez em muito tempo, o
livreiro colocou o cartaz de “tudo vendido”.
Após a abertura de Fernando García de Cortázar, sj., e depois de uma
extensíssima apresentação de Reyes Mate, Castillo foi direto ao
assunto, separando “duas formas de fazer teologia: a dos Evangelhos e a
de Paulo”. Em sua opinião, “a dos Evangelhos é uma
teologia narrativa, enquanto que a de Paulo é uma teologia
especulativa, porque parte de ideias sobre a religião, o pecado, a salvação e o
ser humano”.
Esta dicotomia marcou a evolução
do Cristianismo no Ocidente desde praticamente o surgimento
da Igreja. Para Castillo, “é um fato que as relações entre o divino e
o humano na história da Humanidade foram difíceis, complicadas, tensas e, às
vezes, conflitivas e inclusive violentas. Foram e continuam sendo”.
Aprecia-se, assim, um “conflito entre o
desejo e a proibição que vem do divino”, e que penetra na intimidade das
consciências, onde se dão os sentimentos de culpa. “Se não existisse, todos os
psiquiatras e terapeutas deveriam apontar à paralisação”, disse entre os risos
das pessoas.
No caso do Cristianismo, “esta tensão se acentua porque o centro
é Jesus Cristo, que nossa fé afirma que é perfeitamente divino e
perfeitamente humano”. “Se nossa fé em Jesus fosse como tem que ser -
explicou Castillo -, a fé em Jesus teria que ser a presença
em nós do divino, que deveria nos levar a pensar e a viver da forma mais plena
e coerente o que é humano. Assim, haveria harmonia, gozo, desfrute,
felicidade”. Mas, se ao contrário, “nossa fé em Jesus for vivida como
presença em nós do humano, isso teria que nos levar a pensar de forma plena e
coerente no divino”. Uma das duas? “Mas, as coisas não funcionam assim”,
disse Castillo.
O grande problema, então, é a forma como falamos de Deus, como
definimos Deus, inclusive se este último é possível. “Quando falamos
de Deus, estamos falando do transcendente, e o transcendente, por
definição, é aquele que não podemos conhecer. Se buscamos conhecê-lo, não
conseguiremos de outra maneira a não ser objetivando, e coisificando. Algo
mentalmente elaborado, e isso é Deus”.
Mas, inclusive concebendo esta
possibilidade, “como harmonizamos que Deus é infinitamente bom e
poderoso com este homem e este mundo que temos? Isso não tem solução. Não
existe”. E se não tem solução, então vem minha pergunta. “Deus quer...”.
“Onde ficou sabendo disso? Quem disse a você? Se você começa a me
explicar Deus, é que não ficou por dentro do que é Deus, ou não
admite o transcendente. Você faz uma representação desse momento e isto é o que
as diferentes religiões fazem”, explicou o professor.
Que solução o cristianismo deu a este
problema? “A solução foi Jesus, que é a explicação do que nós podemos
saber e conhecer. Isto é exatamente o diz o Evangelho de João:
ninguém nunca viu a Deus, jamais. É um ato de fé. E então a chave passa a
ser como vivemos esta fé”, destacou Castillo.
E onde está Deus? Castillo utilizou
o Evangelho de João para explicar que Deus está
em Jesus, em seus atos e suas palavras. “Vendo como Jesus atuou
e se comportou, saberemos o que agrada a Deus, o que Deus quer,
o que Deus rejeita. E vemos isso na humanidade de Jesus, porque
a divindade não está a nosso alcance. Justamente porque a missão
de Jesus é nos dar a conhecer o que não podemos conhecer de outra
maneira ou por outro caminho”.
Para Castillo, “Jesus é uma
representação, um ser pessoal que se identifica com Deus e é com ele
que Deus se identificou. Deus soube que a primeira coisa
que precisava fazer para se comunicar conosco era se humanizar”. Uma profunda
humanidade de Jesus que se manifesta na leitura dos Evangelhos,
onde se refletem as “três grandes preocupações de Jesus: a saúde, a
alimentação e as relações humanas”. Por isso, explicou que,
no Evangelho, Jesus aparece curando doentes, partilhando a
comida e acolhendo todo mundo, falando com todos.
É que “a grande preocupação
de Jesus não era se as pessoas pecavam mais ou menos, mas se as
pessoas tinham fome ou estavam doentes”, explicou Castillo. O problema era
o delito, que é prévio ao pecado. E isto fez com que “Jesus entrasse em
conflito com os representantes da religião”.
Mais ainda: “Jesus percebeu que a
religião, da forma como funciona, entra em conflito com a felicidade do ser
humano. As religiões proíbem amar certas pessoas e são exigentes com as coisas
mais íntimas das pessoas, ao passo que se mostram tolerantes com o dinheiro.
Não toleram a igualdade: as religiões se dão mal com a igualdade e precisam
estabelecer diferenças: eu posso mais que você e lhe proíbo que pense ou diga
isso”, destacou o teólogo.
E, no entanto, “segundo o Evangelho, a plenitude do divino se alcança na
medida em que vamos nos aproximando da plenitude do humano. E uma pessoa que
maltrata o humano não pode acreditar em Deus. Quem faz os outros sofrerem,
não acredita em Deus, acredita em uma representação que fez e a qual se
apega, chegando a matar se for preciso”.
Para Castillo, “o problema
da Igreja é que as maiores resistências que teve, desde suas origens,
não foram contra o divino, mas supreendentemente contra o humano”,
ressaltou Castillo, recordando os principais conflitos dos primeiros séculos
do Cristianismo, e os grandes temas que, ainda hoje, sacodem o debate
intereclesial: desde a homossexualidade, à desigualdade entre homens e
mulheres, e também a escravidão. “Sabem quando a Igreja condenou a
escravidão? Com Gregório XVI, na metade do século XIX”.
“É curioso que os países mais praticantes na Europa sejam os do sul, os de mais
religiosidade, observância e tradição... que são os países mais corruptos. E,
ao contrário, os países onde há menos religiosidade, ritualismo e clericalismo
são os países onde esta mácula que sofremos e nos envergonha, nem a imaginam”.
“Por que o Vaticano, a esta altura,
ainda não assinou os acordos internacionais para a aplicação dos Direitos
Humanos”, denunciou Castillo, que agradeceu o ensino, desde João XXIII,
sobre os direitos humanos... na teoria. “Procurem a palavra ‘mulher’
no Código de Direito Canônico (CDC). Não a encontrarão. Minha
convicção é que o CDC é um livro de uma violência... Não é que
aqueles que o fizeram ou o mantêm sejam pessoas violentas. São pessoas fiéis a
sua religião. E como querem ser fiéis e permitirão arrancar a pele antes de
perder sua religião, temos o que temos”, concluiu.
No breve turno de
perguntas, Castillo demonstrou sua impressão de que o
Papa Francisco “concordaria em muitas coisas comigo, ainda que não em
tudo”. Em sua opinião, Bergoglio “é um homem que mudou a figura do
Papado, até o ponto em que aquela imagem hierática do Papa não será fácil recuperar”.
“Neste homem predomina sua humanidade. É um homem profundamente humano”,
destacou o teólogo, que recordou que “tudo o que eu disse ressaltando a
humanidade e a misericórdia, Francisco também enfocou”. Apesar de
tudo, reconheceu que “uma pessoa que tem cargos de governo dificilmente pode
colocar em questão determinados princípios que entrariam em conflito com o
mesmo cargo que desempenha”.
A última pergunta foi: veremos
a Deus?. “Eu acredito na Ressurreição, porque tenho esperança que a morte
não tem a última palavra. E, nesse sentido, posso afirmar minha fé na
ressurreição. Mas, segurança... nenhuma. Em minhas crenças, ela existe”,
finalizou.
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